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Apresentação do romance “Entrevamento”, do escritor brasileiro Antônio Mariano

Apresentação do romance “Entrevamento”, do escritor brasileiro Antônio Mariano

Terminei há dias de ler o romance “Entrevamento”, que constitui a estreia do escritor Antônio Mariano nesse género literário. E que estreia! Antônio Mariano já nos tinha habituado a uma voz muito própria no âmbito do conto e da poesia, mas consegue surpreender-nos ao apresentar um romance de cerca de 260 páginas que se lê de ponta a ponta, com uma escrita fascinante.

Os leitores que acompanham as recensões que ocasionalmente vou publicando neste espaço certamente reconhecerão o nome de Antônio Mariano como o autor do livro de poemas Sob o Amor, que aqui apresentei em 2014. Vive em João Pessoa, capital do estado da Paraíba, e publicou vários livros de poesia, como O gozo insólito (Scortecci, 1991), Te odeio com doçura (Scortecci, 1995) e Guarda-chuvas esquecidos (Lamparina, 2005), todos eles antologiados em Sob o Amor (Patuá, 2013). Tem também publicados os livros de contos Imensa asa sobre o dia, contos (Dinâmica, 2005) e O dia em que comemos Maria Dulce (Dinâmica, 2015).

Entrevamento, romance lançado recentemente, é a primeira incursão de Antônio Mariano neste género narrativo de maior fôlego. O livro conta na primeira pessoa a história de Moacir, um condenado que a partir da cela de um estabelecimento prisional contempla a janela para o exterior e revive as memórias de um seu amor e a série de acontecimentos que ali o acabariam por conduzir. Enquanto escreve a sua história, partilha a cela com João/Joana, um homossexual que terá sido sentenciado injustamente, desesperado por amizade e partilha, mas sobre quem Moacir descarrega os seus violentos ataques de raiva, que frequentemente parecem não ter outro motivo que não o puro preconceito.

Os capítulos são breves e intercalam duas histórias, dois planos que se cruzam alternadamente, como flashbacks - as vivências atuais de Moacir na prisão, a sua relação com João/Joana e outros presidiários, com a direção da cadeia; e por outro lado a sua vida passada, o amor fatal que, supomos, o terá conduzido à prática de algum crime grave. Essa segunda narrativa é a história que Moacir parece simultaneamente querer contar e apagar. Pelo meio, ficamos a conhecer também alguns detalhes sobre o passado do companheiro de cela, que surge como uma trama secundária.

Moacir é um homem ora cruel, ora humano e até ingénuo. Egocêntrico, egoista, machista e de certo modo misógino, Moacir também sofre e, em vão, tenta constantemente livrar-se dessa imagem negra de si próprio. A evidente monstruosidade do seu carácter, própria de um sociopata, contrasta contudo com a sua antiga vida aparentemente normal de funcionário e sindicalista, bem como com a sua capacidade de amar e de se deixar manipular e enganar pelas mulheres com quem se cruza. Moacir acha-se superior, mas constantemente deixa entrever a sua incapacidade para gerir de forma inteligente as suas emoções e o caminho pelo qual elas o conduzem. Ou seja, personagem horrenda umas vezes, mas profundamente humana noutras vezes. Se por um lado, é difícil para o leitor sentir compaixão, por outro lado há certos momentos em que a tal somos conduzidos, num constante turbilhão de emoções contraditórias. Poderíamos argumentar que a personalidade de Moacir se constitui como uma representação caricatural de certos demónios que todos transportamos cá dentro, mas dificilmente alguém ficará indiferente, e arriscaria mesmo dizer que certos leitores e leitoras mais sensíveis terão alguma dificuldade em mastigar e digerir o caráter mórbido do protagonista.

Há contudo um certo pendor realista na narrativa, que decorre num lugar bem definido - a cidade de João Pessoa - e expõe com algum detalhe o quotidiano das personagens, com as exigências da vida, a relação com os amigos, o trabalho e o sexo, e a linguagem do dia-a-dia. Vem-me à memória a célebre canção de Chico Buarque, cuja letra reclamava em tom coloquial que “É pirueta pra cavar o ganha-pão/Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro”. Parece ser esse o mundo que é retratado numa parte deste romance, mesmo que porventura não fosse a intenção do autor. Entrevamento retrata de forma ora realista, ora caricatural, um mundo agreste e selvagem, em termos económicos, sociais e morais.

Depois, temos Sandra Regina, a mulher por quem Moacir se apaixona. Inicialmente, apresentada como o arquétipo da mulher frágil, mas que acaba por ter um comportamento surpreendentemente semelhante ao de Moacir. Descobrimos que, afinal, também esta personagem se foca nos seus próprios objetivos, sem olhar a meios para conseguir o que pretende.

A narração de cenas de sexo que ocorrem neste livro é feita de forma vívida e em linguagem coloquial, mas sem descambar em algum momento numa qualquer forma de literatura pobre ou obscena. São temas sensíveis, num enredo difícil de abordar, e personagens com as quais é complicado estabelecer uma relação afetiva. Considerando tudo isso, a juntar à ousada decisão do autor em optar por um narrador autodiegético, era uma obra em cuja escrita muita coisa poderia dar errado. No entanto, nota-se aqui um curioso à-vontade do autor, que consegue lidar habilmente e com maestria com todos estes aspetos.

Mariano é na verdade um escritor experiente e este romance mostra isso mesmo, saindo enriquecido pelo percurso do autor nos campos da poesia e do conto. É possível encontrar neste livro reminiscências de palavras escutadas em alguns seus poemas que me recordo de ter lido há mais de duas décadas. Portanto, o poeta está aí e aparece com uma voz firme e segura, própria de quem escreve romances há muito. Sendo o primeiro romance do autor, é sem dúvida uma estreia brilhante e que surpreende pela naturalidade com que a narrativa e as descrições nos são apresentadas, e pela habilidade com que capítulo a capítulo o narrador nos cativa para uma história e uma personagem que noutro contexto tenderíamos a odiar.

Já há algum tempo que não lia um romance de ponta a ponta, mas este livro conseguiu prender a minha atenção. É um livro que consegue seduzir o leitor e ao mesmo tempo deixa entrever uma longa reflexão sobre o mundo, permitindo múltiplas leituras, em contraponto com a sociedade, os seus costumes e os seus tabus, e com a forma como percepcionamos os outros e, sobretudo, a nós mesmos.